Conto original de Thais
Matarazzo
(22/4/2020)
Carlinhos
era alto, magro, tinha olhos pequenos e usava óculos com lentes quadradas em
uma moderna armação. Por ser calvo preferia manter-se careca.
Andava
sempre com as mãos para trás a observar tudo e todos, parece que era fiscal em
tempo integral. Sujeito observador, de poucas palavras e muitos mistérios.
Era
funcionário público, trabalhava há 25 anos na mesma repartição em um prédio no
bairro do Paraíso, em São Paulo. Com o tempo fez carreira e alcançou o cargo
máximo. Sua altivez subia junto com os postos alcançados.
Não
é dizer que andava chique, mas estava sempre bem arranjado, com sapatos
lustrosos e camisas engomadas.
Falava
muito bem e gostava de proferir vocábulos pouco usuais e outros tantos de
antanho.
Seu
prazer era humilhar as pessoas, essa atitude o fazia sentir superior. Gostava
de receber elogios, mas retribuir, nunca. Seu ego não permitia.
Dizia
ser descendente de fidalgos europeus, por isso conservava "certo
porte" e prezava pela etiqueta e os bons costumes e não sei mais o que lá.
Os
colegas resumiam-no numa única palavra: chato!
Nunca
ninguém soube o seu verdadeiro endereço: uma hora ia para um lado, outro dia
seguia para outro.
—
Carlinhos deve morar num casarão! - fala um colega.
—
Casarão não sei, mas deve ser um apartamento top! Ele é chique! - arriscava um
puxa-saco.
Tinha
um subordinado, o Maneco, que detestava o chefe. Não suportava a sua empáfia.
Carlinhos
ao adentrar a repartição começava por passar os dedos nas mesas para ver se
havia poeira. Queria ordem, muita ordem — inclusive de pensamentos! Nada podia
estar fora do lugar, nenhum lápis. Era um terror. Só faltavam os colegas lhe
baterem continência!
—
Atenção! Atenção! Atenção! Tudo deve estar em perfeita harmonia nesta seção! Já
sabem, não tolero desobediência!
Os
funcionários o miravam com olhos de metralhadora. Mas houve quem o contrariasse
e se "desse mal". Carlinhos possuía "costas quentes",
afirmava ter muitos contatos.
Certa
vez, Maneco, que é brincalhão, cismou de fazer uma piada com a careca lustrosa
do chefe. Pra quê?
Carlinhos
ficava numa salinha contígua e que tinha um espelho grande. A sua mesa estava
instalada em frente ao espelho. Como Narciso, ele gostava de se admirar! Vez ou
outra um funcionário passava e dava uma espiadela, com um olho só, e o chefe
estava a alisar o couro cabeludo e passar um líquido brilhante.
Terminado
o expediente daquele dia, Maneco esperou o encarregado na porta e disse:
—
Já passou banha na careca, agora é gozar a vida, certo, seu Tapioca?
Todos
riram.
Carlinhos
de branco ficou vermelho-tomate! Odiava quando alguém o chamava pelo sobrenome.
Respirou fundo, contou até dez e disse:
—
Tapioca é a mãe!!! — e saiu feito um diabo.
Um
colega comentou com Maneco que ele nunca deveria ter dito tal galhofa.
Carlinhos "era poderoso" e vingativo.
—
Não tenho medo. Vocês são todos uns "cagões". Tem paura do chefe.
Aqui não se pode nem espirrar! — respondeu o companheiro.
No dia
seguinte, Carlinhos chegou ao trabalho antes de todos. Silencioso, olhava para
a porta e o relógio. Anotava cada segundo de atraso. Batia sistematicamente a
ponta do pé. Aguardava Maneco.
Folgazão,
ele chegou saudando e distribuindo sorrisos aos colegas.
— 5
minutos e 11 segundos atrasado!!! Qual a sua explicação, sr. Manoel Araújo? —
questionou o diretor.
—
Bom dia! Como? Como?
—
Cale-se! Aqui quem dá as coordenadas sou eu. Não admito atrasos! E tem mais
quero dizer ao senhor, aqui, perante todos, que a partir de hoje estão
proibidas piadas e brincadeiras de mau gosto. Isto aqui é uma repartição de
respeito. Qualquer ofensa pode ser passível de processo e tenho aqui muitas
testemunhas, sr. Manoel Araújo! O senhor me ofendeu ontem, afirmou que eu uso banha
no couro cabeludo. Que absurdo! Não sou um selvagem como o sr. Sou um homem
fino de raiz. Uso sim uma loção francesa. Aliás não devo satisfação nenhuma a
ninguém! E só não o processo porque sou muito bom e vou lhe perdoar. Mas saiba
que amanhã o senhor será transferido para o almoxarifado! — proferiu em alto e
bom som o chefe.
— O
senhor não pode fazer isso. Sou um funcionário concursado. Tenho os meus
direitos.
—
disse Maneco.
Carlinhos
deu um sorriso cínico e saiu.
Maneco
ficou cabreiro, mas no fundo deu um suspiro de alívio.
Ficou
louco da vida com aquela chamada vexatória perante os companheiros. Jurou se
vingar. Todos os dias passou a esperar Carlinhos na saída. Começou a segui-lo.
Haveria de descobrir onde o "engomadão" morava.
Na
segunda semana de observação, notou que ele tomou a direção da Rua Vergueiro,
sentido centro. Foi atrás. Conforme chegaram perto de um cortiço, Maneco viu o
ex-diretor cumprimentado o pessoal, falando em gíria e andando gingado.
Nos
dias seguintes o caminho foi o mesmo.
Maneco
foi se achegando, pergunta daqui, conversa dali, e descobriu que o
"Tapioca" era um camarada do pedaço há tempos. Jonjoca Tapioca, um
"faz quase nada da vida", como se intitula, é primo de Carlinhos.
—
Aí cara, o primo divide o cafofo comigo! Tá ligado. Ele é do tipo que come
mortadela e arrota lagosta! Viaja pros estrangero, usa roupa de marca… Tá
sempre pendurado. Além do quê paga pensão pra ex e pros 3 filhos. Anda caidinho
por uma dona que depena o pato direitinho! Os cara do trampo pensa que ele é todo
fino, culto. Que nada… — revelou Jonjoca em estado etílico.
—
Quero conhecer esse cafofo, cara. Me leva lá? — disse Maneco.
—
Ihhhhh… Mas o que ocê tá querendo?
—
Sem perguntas. Te dou 150 mangos. É pegar ou largar?
O
primo aceitou a proposta. O cafofo ficava nos baixo de um terreno acidentado. O
cheiro de mofo impregnava o ambiente. Ao abrir a porta, Maneco não acreditou no
caos encontrado.
— É
aqui que o "Careca" e eu mora.
—
Tô vendo! — falou Maneco e começou a fotografar tudo. Satisfeito. Partiu.
No
dia seguinte, ele chegou à antiga repartição com seu habitual bom humor.
Cumprimentou todos e falava alto.
O
leão saiu da toca.
—
Que feira é essa aqui? O que o senhor faz aqui? Está proibido de pisar nesse
andar. Saia, saia… — ordenou Carlinhos.
—
Pega leve, "Careca"! Só vim aqui dizer um oizinho. Não precisa ficar
nervoso.
—
Que linguajar vulgar é esse?
— O
mesmo lá do buraco, do cafofo que você habita. O primo Jonjoca me apresentou a
sua "rica residência", ali numa quebrada da Vergueiro!
Carlinhos
ficou atônito.
—
Aqui pessoal, venham aqui ver no meu celular as fotos do cafofo dos Tapiocas.
A
turma curiosa rodeou Maneco. Não acreditaram! E o sangue azul, a etiqueta, os
bons costumes, o asseio, a ordem???
O
chefe ficou desmoralizado. Não adiantou tentar se defender. Tantas vezes chamou
os colegas de medíocres, agora tiveram provas que ordinário, mentiroso e pobre
de espírito era ele!
O
orgulho de Carlinhos não permitiria que ele continuasse ali, acostumado a ser
adulado e se fazer respeitar por ameaças, havia perdido a majestade. Mexeu os
seus pauzinhos e acabou transferido para outra secretaria.
Lá
no cafofo o clima esquentou: os Tapiocas brigaram feio. Jonjoca teve que se
mudar.
Carlinhos
continuou a levar a sua vida, agora em outro ambiente aonde a concorrência era
acirrada.
Sem
ter onde encostar, o primo quando avistava Carlinhos passar na Rua Vergueiro
gritava:
— O
"Careca" deixa eu voltar pro nosso cafofo. Juro que nunca mais conto seus
podres! Afinal somos todos Tapiocas, tudo igual, tudo irmão!!!
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